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A ascensão do jornalismo paulista

Marginal até o início do século XX, a imprensa de São Paulo se tornou a mais poderosa caixa de ressonância da política nacional
nos últimos 40 anos, uma transformação que reflete o deslocamento do eixo de poder no país
por Oscar Pilagallo

      A imprensa paulista é, já há algum tempo, a mais poderosa caixa de ressonância da política brasileira. Jornais e revistas produzidos em São Paulo desestabilizaram a democracia, no início dos anos 1960, apoiaram o golpe militar de 1964 e mais tarde lhe ofereceram resistência, desempenharam papel relevante na transição democrática dos anos 1980, construíram e destruíram um presidente e hoje vivem entre a convergência e a polarização que caracterizam o jogo do poder em Brasília.


      A mídia de outras capitais, do Rio de Janeiro ou de Porto Alegre, por exemplo, também influiu em todos esses processos, da mesma maneira que a televisão, que, devido à sua abrangência nacional, não pode ser circunscrita a uma ou outra grande cidade. Mas o fato é que, com frequência, a imprensa paulista – sobretudo a paulistana – esteve à frente das iniciativas, determinando o tom das coberturas mais importantes.


      Se o jornalismo praticado em São Paulo ganhou tal peso, isso não se deveu apenas a qualidades intrínsecas de suas empresas e profissionais. Seria mais adequado considerar que a imprensa paulista refletiu, ao longo das últimas décadas, as transformações da sociedade em que está inserida. Em outras palavras, o poder de fogo de seus jornais é proporcional ao espaço, político e econômico, que São Paulo ocupa no cenário nacional.

      É uma observação que, de resto, poderia ser aplicada à imprensa de outras praças. Os jornais cariocas, para ficar na comparação mais próxima, viveram seu apogeu enquanto o Rio de Janeiro abrigou a capital do país, no Império e durante a maior parte da República. Se a transferência da sede do governo federal para Brasília, em 1960, esvaziou politicamente a cidade, tal mudança não poderia deixar de ser espelhada na imprensa local. Não foi à toa que o Rio perdeu, no intervalo de poucos anos, dois dos jornais mais influentes que o país já teve: o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil.

 

      O primeiro grande periódico paulista, que nasceu em 1875 como A Província de São Paulo, em dois momentos: 1911, já rebatizado de O Estado de S. Paulo (à esq.) e à frente da Revolução Constitucionalista de 1932 (à dir.)

A trajetória da imprensa em São Paulo se deu em sentido oposto. No início do século XIX, a província não podia estar mais afastada do centro das decisões. Foi o período, que ainda se estenderia por várias décadas, em que São Paulo fez por merecer o epíteto de “capital da solidão”, na feliz expressão de Roberto Pompeu de Toledo, historiador da cidade. Nesse ambiente de vila acanhada, surgiu em 1823 o primeiro jornal, O Paulista, manuscrito, porque não havia prelo disponível. Na época, o primeiro jornal produzido no Brasil, o oficia-lista Gazeta do Rio de Janeiro, já circulava havia 15 anos.

      O Império representa a pré-história da imprensa brasileira. Títulos surgiam às dezenas, mas os veículos tinham, por natureza, caráter fugaz. Na maioria, não passavam de panfletos em que seus redatores se digladiavam publicamente. O governo mantinha uma atitude ambígua em relação à liberdade de imprensa. Na Constituição, ela estava garantida. Na prática, porém, era limitada por ameaças de punição por abusos. Mas o que era abuso? Um exemplo: negar dogmas da religião católica podia render pena de um ano de prisão. Nada, no entanto, freava a disposição para a polêmica. O próprio D. Pedro I frequentava as páginas dos jornais, sem fazer segredo de que era ele o autor de artigos assinados por pseudônimos como Inimigo da Canalha ou Açoite dos Patifes.

      No Segundo Reinado houve maior liberdade de imprensa. As leis eram basicamente as mesmas, mas, em um regime de poder centralizado, pesava a atitude do imperador, e D. Pedro II permitiu aos jornalistas escrever o que quisessem, tendo naturalmente se tornado o alvo preferencial dos jornais de oposição.

     É nesse contexto que surge o primeiro jornal paulista que, desde então, teria grande importância, primeiro local, mais tarde nacional. A fundação, em 1875, de A Província de São Paulo, que com o advento da República passaria a se chamar O Estado de S. Paulo, refletiu a expansão de uma classe econômica, a dos cafeicultores. Eles tinham dinheiro, mas sua voz não era ouvida além das fronteiras do estado – daí a necessidade do jornal.  A Província nasceu republicana, mas estabeleceu de saída a diferença em relação ao movimento na capital federal. Enquanto no Rio intelectuais e funcionários públicos privilegiavam o abolicionismo, os fazendeiros de São Paulo davam ênfase ao federalismo.
     Saudada com otimismo, como se fosse o limiar de tempos mais arejados, a República não correspondeu à expectativa de um regime mais aberto. Não, pelo menos do ponto de vista da liberdade de imprensa. Embora ela continuasse assegurada pela Constituição republicana, uma série de leis restritivas e sucessivos estados de sítio restringiram a atividade nos anos 1920.
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A Gazeta (à esq.), durante o Estado Novo, e Última Hora (à dir.), na década de 1950, prosperaram graças à proximidade com o governo de Getúlio Vargas
    Entre as vítimas, figuravam inevitavelmente os jornais anarcossindicalistas dirigidos aos operários imigrantes, que representavam expressiva parcela da população de São Paulo. Os jornais tradicionais, porém, também enfrentavam problemas com o governo. Além do  Estado, a Folha da Noite, nascida em 1921, e a  Folha da Manhã, de 1925, que mais tarde dariam origem à  Folha de S. Paulo, passaram a apoiar o Partido Democrático, uma dissidência do Partido Republicano Paulista. O movimento tenentista se encontrava em ebulição, e a imprensa via com simpatia a pauta dispersa de reivindicações dos militares de baixa patente, como a exigência do fim da corrupção e eleições sem os vícios típicos da República Velha.
Cooptação e repressão
      Tal insatisfação seria o pano de fundo da deflagração da Revolução de 1930. Como na época da Proclamação da República, o ambiente político foi contagiado pelo otimismo de que, agora sim, novos tempos estariam nascendo. E, como na República, o otimismo deu lugar à decepção das elites econômicas. O chamado Governo Provisório de Getúlio Vargas não demorou a demonstrar que podia ser tudo, menos provisório. São Paulo se sentiu traído e, em 1932, fez a Revolução Constitucionalista, com o incentivo irrestrito da mídia local. Vários membros da família Mesquita, proprietária do Estado, alistaram-se. E o radiojornalismo, que surgiu nessa ocasião, na Record, mobilizava a população.

      São Paulo foi militarmente derrotado, mas continuou a crescer em termos econômicos, o que solidificava a estrutura industrial das empresas de comunicação. A situação da imprensa paulista seria logo impactada pela ditadura do Estado Novo, a partir de 1937. Getúlio Vargas inaugurou uma política baseada na dicotomia repressão-cooptação. Os veículos que não se dobraram sofreram intervenção: foi o caso do Estado. Outros preferiram o silêncio, como a Folha, que voltou seu noticiário para assuntos agrícolas. Muitos, por fim, cederam à tentação dos favores oficiais e construíram as bases de futuros impérios, como a cadeia dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, ou, em menor escala, A Gazeta, de Cásper Líbero.
(C) EDER CHIODETTO/FOLHAPRESS
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Manifestantes pedem o impeachment de Fernando Collor em São Paulo no início dos anos 1990. Os jornais e revistas do estado desempenharam um papel central na eleição e no afastamento do presidente
Finda a ditadura, em 1945, o hiato democrático das duas décadas seguintes seria marcado pela Guerra Fria. No mundo, Estados Unidos e União Soviética mediam forças em torno dos projetos capitalista e comunista. No Brasil, tal confronto ganhou cores tropicais: de um lado o conservadorismo da UDN (União Democrática Nacional), de outro o populismo do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro).

A grande imprensa era esmagadoramente udenista. Para ter uma voz a seu favor, o agora presidente eleito Getúlio Vargas incentivou Samuel Wainer a criar seu próprio jornal, o Última Hora. Nascido no Rio, o periódico ganhou uma versão paulista a partir de 1952. A virulência dos veículos tradicionais criou um clima de instabilidade, contribuindo para o desfecho conhecido, o suicídio de Vargas em 1954. A campanha antipopulista só cessaria com o golpe militar de 1964, apoiado pela grande imprensa.
      A ditadura militar obrigou os jornais paulistas a mostrar o que tinham de pior e de melhor. Para começar, o apoio ao golpe contra João Goulart – um presidente que, por mais que possa ser criticado, exercia seu mandato de acordo com a Constituição – não foi defendido apenas em artigos e editoriais. Na sede do Estado, o golpe era tramado junto com militares que logo assumiriam o poder. O jornal, no entanto, passou depois a criticar o novo regime e enfrentou de maneira heroica e criativa a censura, publicando trechos de Os lusíadas, de Camões, para denunciar o material cortado pelos censores.
      A Folha descreveu movimento semelhante. O jornal não se envolveu tão diretamente no golpe mas, quando a repressão aumentou, depois de 1969, desempenhou um papel lamentável. Ter aceito a censura foi o mal menor. O pior foi a Folha da Tarde, editado pela mesma empresa, passar a glorificar a ação praticada nos porões da ditadura, cujos agentes chegaram a utilizar carros do grupo. E, no entanto, no momento seguinte, o jornal surgiu como ponta de lança da distensão política proposta pelo governo, iniciativa que desaguaria na transição democrática. O lance da Folha se deu em dois tempos: primeiro, a partir de 1974, ao apostar em um projeto pluralista, abrindo suas páginas à sociedade civil; segundo, a partir de 1983, ao liderar o movimento das Diretas-Já, o começo do fim da ditadura militar.
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   Fernando Collor, o primeiro presidente eleito depois da ditadura, constitui um caso único de relacionamento pendular entre governo e imprensa. Político desconhecido, foi eleito em grande parte devido à campanha da mídia, que nele identificou o melhor candidato anti-Lula. Mas o desastre político de sua gestão – do sequestro da poupança popular para combater a inflação às acusações de corrupção, passando pelo desprezo das forças no Congresso – levou a imprensa a “desconstruir” sua figura pública.
     O protagonismo da imprensa paulista foi fundamental. As duas principais revistas editadas em São Paulo, Veja e  IstoÉ, forneceram a matéria-prima para o processo de condenação pública de Collor. A primeira trouxe ao conhecimento público o rol de acusações numa entrevista com um irmão do presidente; a segunda lhe deu o golpe de misericórdia ao apresentar a testemunha que o ligava ao esquema de corrupção comandado pelo tesoureiro de sua campanha. Quanto aos dois principais jornais de São Paulo, Estado e Folha, jogaram o peso institucional de seus editoriais em um pedido simultâneo de impeachment, que não demorou a ser atendido.
Tucanos X Petistas 
 
      De lá para cá, a imprensa oscila entre a polarização e a convergência. A primeira é mais visível: os últimos quatro mandatos presidenciais foram igualmente divididos entre coligações lideradas pelo PSDB e pelo PT. A imprensa refletiu esse antagonismo. A maior parte da grande imprensa, mais conservadora, alinhou-se aos tucanos em momentos-chave. Quanto ao PT, ficou com o apoio de publicações como Carta

 
Papel lamentável: durante a ditadura a Folha da Tarde mostrou o que a imprensa paulista tinha de pior ao apoiar abertamente a repressão e até ceder carros para os agentes do regime
Capital e Caros Amigos e, sobre-
tudo, de blogs com eficiente capilaridade entre as comunidades virtuais.
      Já a convergência é elusiva. É inegável, porém, que ganha força a percepção, na imprensa, de que há certa convergência entre as duas forças políticas dominantes. Em que pesem as ambições pessoais de cada lado, o que impede uma aproximação, os projetos políticos não são discrepantes em seus aspectos essenciais. Fernando Henrique Cardoso colocou na agenda nacional a estabilização econômica, algo preservado por Lula e agora por Dilma. Lula fez o mesmo com a preocupação social, e os tucanos se esforçam para empunhar essa bandeira.
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Polarização: capas das revistas Veja e IstoÉ durante a campanha presidencial de 2010 mostram como o antagonismo entre PT e PSDB se reflete nos meios de comunicação
No varejo, é possível contabilizar muitos casos recentes de excessos, sobretudo na cobertura das eleições presidenciais. Nada, no entanto, é comparável ao vale-tudo daquele hiato democrático entre o Estado Novo e a ditadura militar. Só uma perspectiva irremediavelmente nostálgica pode identificar vibração no que não passava, no mais das vezes, de irresponsabilidade.

Um olhar em retrospecto é útil exatamente para mostrar que a imprensa paulista evoluiu ao longo das últimas décadas. Hoje, os grandes grupos são reféns do marketing da imparcialidade como meta, que tiveram de encampar como resposta a uma sociedade que exigia um tratamento pluralista da informação. Se a meta ainda está distante e se há muita retórica por parte da mídia, é preciso reconhecer que não falta disposição para trilhar tal caminho e que a retórica não é vazia.
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